quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Depoimento

Sei que possuo uma genialidade feroz pra escrita, mas só não tenho modos de provar ela, se é que eu sinto necessidade disso agora já que tô aqui na sua frente, ocupado. Pois então, vêm as ideias e é algo selvagem, uma intensidade do caralho que me deixa com uma tontura louca. Eu saio por aí correndo, até nu quando é de noite, catando papéis, e meu Deus onde é que eu coloquei o lápis? e tal, aí eu vou me arrastando, tremeluzindo como luz de vela, como que tomado por uma vontade repentina de dar aquela mijada. Nem tempo de me sentar eu tenho; me largo no chão mesmo esperando aquele ápice que vai me fazer botar tudo aquilo pra fora e que vai ser a salvação praquele estado de esgotamento. Mas as palavras não vêm, não vêm, não vêm, elas fazem peraltices com minha vontade talvez porque materializar o que eu penso é o curto pavio que depois de aceso vai causar o colapso do mundo, sabe? E essa linha... essa linha é tênue, melhor que não se rompa. Escrever é muito como um jogo de combinações que eu sempre perco, entende? A disposição errada dos caracteres, das sílabas, das consoantes e uma palavra ao invés da outra fode toda a mensagem, acaba falsificando minha expressão. É aí que eu falho. Vou te dar um exemplo: pode me vir à mente a nasalada “saliência”, quando minha vontade era de meter uma gravidade, tipo “protuberância”. Não que eu despreze a “saliência”, mas a “protuberância” dá pra comer. Imagina só que você começa e o “pro” é como se você encostasse os dentes na casca de uma manga, no “tu” cê finca os dentes, tá imaginando? Então, no “berância” cê fica contemplando aquela sangria e o néctar amarelo e viscoso escorrendo e ensopando suas mãos. Cara, isso é fantástico, tu não acha? E toda essa experiência sensorial numa palavra! Pensa só num texto inteiro... Mas a “protuberância” nunca vem na hora que eu quero, e me deixa com uns sintomas, porque me dá uns espasmos no pescoço e meus dedos ficam exaustos de tanto estalar, num esforço de acender aquele isqueiro que é o resgate da “protuberância” que eu preciso nesse instante-agora. É como se no mar da minha mente, do cardume do vocabulário, a “protuberância” se aproximasse da praia através das ondas, salgasse minha consciência de leve num beijo e voltasse na vazante, na contracorrente da minha língua e da ponta dos meus dedos. Agora, me explica como isso pode acontecer logo comigo, um ser que trabalha com as letras? Já estou pensando que é algum tipo de doença incurável, ou talvez algo incompreendido pelos homens. Primeiro, chegam os colegas de trabalho. E eles chegam sorrindo, como se as coisas corressem como um rio, que se por acaso se depara com um percalço, dá seu jeito, se contorce, muda seu curso prum outro nem que seja desconhecido, só pra continuar com sua sina. Mas eu... Eu sou uma barragem, um dique. E os filhos da puta sentam e começam aquela orquestra caótica de teclas, produzindo simultaneamente todas aquelas notícias. Mas até aí está tudo sob controle, ainda tô calmo, embora haja um desespero velado de me colocar à frente da tela branca com uma barra piscando a cada segundo. Sinto que vou ser engolido por ela. Chamo isso de complexo de Deus. É a porra de uma tela branca, um nada, um vazio, de onde podem ser criadas todas as coisas. Então um sujeitinho de merda me grita sobre o dead line e eu fico pálido. A barra ainda não saiu do lugar. A pressão do momento me afivela, me doma como a um cavalo, e eu desato a escrever freneticamente no último minuto do segundo tempo. Entrego o que eu fiz em cima da hora, ainda meio atordoado, sem ter muita noção do resultado. No dia seguinte debulham minha dignidade com uma porção de elogios. Penso: “essas porras devem estar me sacaneando. Devo escrever umas merdinhas de texto, mas eles me mantêm no trampo porque os tempos são de crise e precisam de algum divertimento de vez em quando pra seguirem com suas vidas.” Não é autocomiseração, nem falsa modéstia, só sei que o que sai no papel – quando sai – é o feijão com arroz que a gente come todo dia. E feijão com arroz todo mundo faz, todo mundo posta na internet e fica à vista de milhões de pessoas planeta afora. E a minha impressão é que as ideias são muito parecidas umas às outras, conectadas de alguma forma por um fator-comum. Hoje todo mundo é conhecido e achque conhece um pouco sobre tudo, mas na verdade falam tudo sempre sem dizer nada. E a originalidade pra mim só vem no improviso. Eu queria muito saber improvisar no papel, e que esses improvisos fossem intensos e capturassem como fotografia todo o instante, o aroma, os sentimentos, o rodopio, a temperatura, e que essas descrições fossem tão fidedignas ao ponto de causar torpor no leitor, que se assustaria com a impressão de estar sendo transportado, escorregando devagarinho devagarinho pra outra dimensão. Queria me ver como um músico de jazz, bondosamente acariciando seu sax, pá-rá-ri-pá-rá-riiii-páráripápá, deixando que ele cante seu canto sinuoso, que vai passeando pela casa toda iluminada de azul, meio opaca pela fumaça dos cigarros, e que por fim alcança os ouvintes todos, massageando seus egos e psique. E o músico é o mais bravo de todos os seres humanos. Ele é o instrumento de um plano desconhecido, catalisador da arte metafísica, que segue suando em bicas não por estar exausto, mas por exalar tanta vida que seu corpo terreno e finito e perecível não consegue conter justamente porque o que atravessa ele, o que o possui e o toma por completo, tem uma aura de algo que não é de sua natureza. Se você já assistiu uma apresentação de jazz sabe de que arrebatamento tô falando. O músico está ali, na sua frente, tão vulnerável mas pouco se fudendo pra você e pros outros na plateia porque agora ele está num elevador, subindo pra patamares tão acima que a gente nem imagina, e o que resta aqui embaixo é algo etéreo, luminoso, harmoniosamente vulgar, e que mesmo depois de horas, bem longe dali, fica ressoando na sua cabeça e movimenta o corpo, faz tamborilar os dedos e assoviar algumas notas da melodia. É disso que eu tô falando, da melodia como elevação. Não que os textos não tenham melodia nem elevem, pelamor!, eu nunca diria uma coisa dessas porque estaria mentindo, já que já me senti exaurido muitas vezes pelas viagens às entrelinhas dos meus autores favoritos, que me fizeram acreditar num mundo invisível pelo toque das vozes deles, entende? Porque se alguns deles já morreram e continuam se comunicando com a minha alma flagelada, e me dão paz e conforto, é porque um algo indecifrável existe. Mas veja, não me leve a mal, músicos são seres abençoadíssimos pelas musas com o dom da eternidade. Quer ver? Olha só, por exemplo, se eu te pedir pra cantar sua música favorita, cê vai conseguir certo? Até as suas da infância eu aposto que tu é capaz reproduzir. Agora, vê só, se eu te pedir pra recitar o primeiro parágrafo dos seus romances de cabeceira, assim, de memória, cê seria capaz? Achque não, né? Às vezes eu mesmo achque tô exagerando pensando dessa forma, mas outra parte de mim me dá total razão, porque as artes cênicas e seus gestos e suas expressões faciais são universais, a música é universal, as cores que servem os pintores são universais, mas e a escrita? Até ela provocar em gente estrangeira esse 'algo', que eu vou chamar aqui de it, do inglês, você vai depender de uma tradução decente, sem contar as expressões das línguas que caem em desuso com o tempo, saca?... Embora... Tá, talvez eu esteja sendo injusto... E, talvez eu esteja exagerando mesmo... Ou sendo bem sincero, talvez eu sinta inveja desses caras geniais que estão por aí, que não têm só a capacidade de escrever bem, porque isso se adquire com alguma prática e disciplina, mas eles possuem olhos especiais, poéticos, que enxergam o it das coisas, e eu só enxergo o it pelos olhos deles. Ou melhor, eu até vejo, mas como eu já contei, não consigo pôr no papel, e também não tem como sair de outra forma que não seja pela escrita porque eu já tentei. Cara, isso me dá um desespero!, porque eu tô solteiro, não tenho contato com a família direito, nem pai e mãe vejo, e meus amigos vão morrer ou eu vou acabar morrendo pra eles um dia... e o que eu escrevo na redação, e que é lido diariamente no jornal sem constar minha assinatura, amanhã não embrulha mais peixe como costumavam dizer, mas serve de pinico pros cães ou forro contra respingo de tinta ou vai pro lixo. E então onde minha existência fica? Quer dizer, meu legado se resumirá a... ao quê? Tá muito difícil ser lembrado hoje em dia. A concorrência é muita, cada dia é um que surge, e até quem não devia ser lembrado acaba sendo, e dá enjoo a ideia de a única referência sobre mim ser uma lápide com o dia em que eu nasci, embalado por uma série de sonhos projetados dos meus pais, e a data em que eu tropecei e caí na cova, e aí uma inscrição do tipo “aqui jaz a barra que piscou inerte a vida inteira”, sabe? Quero que meus leitores carreguem meu corpo debaixo do braço até um sarau e me recitem em voz alta, e que as vibrações das vozes me ressuscitem e despertem sonhos de gente adormecida, apresentem o it que tá a nossa volta, e que falando da minha cidade e da minha realidade e sobre o que sinto eu toque gente da puta que pariu, que nunca tinha lido algo brasileiro que tocasse tanto, como se minhas palavras tivessem viajado o mundo pra existir só pra elas. E quero que esta repercussão aconteça enquanto eu ainda estiver vivo e me leve a conhecer gente louca, curiosa e interessante, bacana mesmo, pra figurar naquelas fotos documentais com aquelas legendas tipo “fulano, ciclano e beltrano, representantes do movimento tal”, que reuniria gente de todas as artes, todos brasileiros, e seria vanguarda e referência pra todo mundo, então eu abandonaria minha carreira pra viver de fato, porque não haveria mais aquele esforço mecânico e artificial e tudo fluiria bem como sempre deveria ser, afinal, eu penso que a vida ideal é aquela que segue fluindo sem esforço... Mas enfim, não é isso o que acontece. Na verdade, tô bem longe dessa realidade. Pra vingar, só tendo um derrame de todo lado esquerdo do cérebro pra me livrar do meu eu crítico e repressor da minha criatividade. Bom, e enquanto meu eu enrustido não se liberta, não vejo motivos pra estar aqui, então achque podíamos encerrar, né? 
Sim, eu sei.
Mas não posso, não dá! Cê não vai conseguir nada comigo. 
Não tenho o que você quer, tá bem?, então vamos parar. Se quiser te indico alguém, tá cer-

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