Maria José sentou-se no último banco do velho ônibus. Deste modo estaria mais perto da sua casa, e chegaria mais tarde ao destino, mesmo que por poucos segundos em relação aos passageiros da frente. E na chegada, o que a esperaria? Não sabia dizer e nem queria pensar. O que deixava pra trás ainda tomava boa parte de seu pensamento. E nessa recaída de saudade, Maria apertou o neném contra o peito. Sorriu. Pelo menos poderia garantir o leite para seu filhote enquanto estivesse viva. Agradeceu a Deus pelos Seus favores às femininas, e agradeceu também pela sua vida que Ele haveria de manter sã até seu filho ganhar altura. Gostava de ter fé nisso, ainda que, às vezes, as circunstâncias lhe fizessem desacreditar de tudo. E entre os peitos da mãe e a cara vermelha da criança estava um terço que machucava o neném com os cravos de Jesus. Incomodado, o neném se remexeu, principiou um resmungo. A mãe começou então a cantar uma cantiga que aprendeu na infância com sua mãe, que aprendeu com a sua vó, que diz tê-la aprendido da biza. Assim acalmou o menino e um pouco de si mesma. A melodia lembrava-lhe a infância que, embora sofrida, fora uma infância de criança que brinca. Estudo também era importante para painho, um dos poucos que pensavam assim. E agora esperava colher o que plantou no passado nesta viagem que durou três sóis, mas que já não era tão sol quanto o de onde veio. Desceu do ônibus pensando nisso. O motorista ajudou a desembarcar a mala de Maria enquanto ela respirava o cinza, cor que nunca havia visto nem sentido antes, senão pelo preto desbotado das vestes de luto, e dos bancos empoeirados e encardidos do ônibus que fizeram o filhote espirrar. Em seguida, ele abriu a boca ainda sem dentes num sorriso, e ela quis acompanhá-lo, mas sentiu que estava esquecendo alguma coisa. Olhou para o lado, e lá estava a mala. Olhou pra trás, o ônibus já partia. Pôs então a mão no peito oco, agarrando com força o seio ressequido exceto pela água vermelha, que corria, e a branca, que alimentava. Logo soube o que havia esquecido: tinha deixado o coração lá na esquina da rua de casa, que serve de fim pras romarias.
segunda-feira, 29 de julho de 2013
segunda-feira, 22 de julho de 2013
Memórias
figuras,
memórias gravadas
em músicas
minúcias, sentimentos
gravados em objetos
significado ao que não tem valor
nova dimensão, outro mundo
acesso livre, irrestrito
gratuito, profundo
medidas infinitas
lembranças
que voltam
tristes, alegres
neutras, mascaradas
espalhadas, soltas
que unem-se em registros
momentos marcados
que não marcam sua volta
é o momento
e nada mais
pode ir, e voltar nunca mais
e se volta, à casa torna
e nos sentimos em casa
é foto
que marca outro momento…
são mais memórias.
memórias gravadas
em músicas
minúcias, sentimentos
gravados em objetos
significado ao que não tem valor
nova dimensão, outro mundo
acesso livre, irrestrito
gratuito, profundo
medidas infinitas
lembranças
que voltam
tristes, alegres
neutras, mascaradas
espalhadas, soltas
que unem-se em registros
momentos marcados
que não marcam sua volta
é o momento
e nada mais
pode ir, e voltar nunca mais
e se volta, à casa torna
e nos sentimos em casa
é foto
que marca outro momento…
são mais memórias.
segunda-feira, 15 de julho de 2013
Coisas Ordinárias
Tudo que me toca e me fascina,
pra mim parece poesia:
um jornal e uma xícara de café
a moça no parque vestida de azul,
a câmera na mão da menina,
o carteiro que passou e ninguém viu;
O açougueiro assobiando na rua,
e o balanço do salgueiro no outono;
É a partitura;
É a música;
É quem toca,
e quem escuta;
Um menino
lendo um livro
sentado à porta
de uma igreja;
É a sensação
de quando o sol se põe
num infinito de céu que escurece;
É um arco-íris enclausurado
numa bolha de sabão;
A mulher de olhar reticente,
e também o homem comprando passagens;
São os movimentos da mão;
O tlec-tlec da minha máquina de escrever
e o vaivém de pessoas e de trens
na estação;
É o escuro, é o couro, é o mudo,
e o sangue, e o amarelo, e o funil.
E é tanta coisa bonita
que com tanta coisa rima
no sentimento e na grafia
que sei lá,
minha contemplação das coisas ordinárias
toma tanto do meu tempo
que sei não,
devo ser tão ordinário quanto.
pra mim parece poesia:
um jornal e uma xícara de café
a moça no parque vestida de azul,
a câmera na mão da menina,
o carteiro que passou e ninguém viu;
O açougueiro assobiando na rua,
e o balanço do salgueiro no outono;
É a partitura;
É a música;
É quem toca,
e quem escuta;
Um menino
lendo um livro
sentado à porta
de uma igreja;
É a sensação
de quando o sol se põe
num infinito de céu que escurece;
É um arco-íris enclausurado
numa bolha de sabão;
A mulher de olhar reticente,
e também o homem comprando passagens;
São os movimentos da mão;
O tlec-tlec da minha máquina de escrever
e o vaivém de pessoas e de trens
na estação;
É o escuro, é o couro, é o mudo,
e o sangue, e o amarelo, e o funil.
E é tanta coisa bonita
que com tanta coisa rima
no sentimento e na grafia
que sei lá,
minha contemplação das coisas ordinárias
toma tanto do meu tempo
que sei não,
devo ser tão ordinário quanto.
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