sábado, 30 de agosto de 2014

Sampa

          São Paulo é o município mais populoso do País. São quase doze milhões de personagens se trombando todos os dias nas calçadas, nos elevadores, vagões de trem e metrô, filas de banco, teatros e cinemas, tanto na periferia quanto no centro, também nos remanescentes verdes chamados de praças... Em qualquer canto desta cidade seus cidadãos perfazem histórias. Boas e más. Alegres e tristes. Na verdade, bem mais dinâmicas e complexas do que isso, como demanda a vida. O trânsito que pulsa lento, à beira de um ataque cardíaco, faz vítimas do estresse e de acidentes. Mas também de paixonites e flertes. Você espirra e se torna responsável pela morte e pelo nascimento de um habitante paulistano. Compra-se flores para vivos e mortos. Enquanto um dorme e sonha, outro não dorme e versifica sua insônia. Pais levam seus filhos à escola, amantes consumam seus sentimentos em beijos, médicos dão consultas a seus pacientes, garis acabaram de varrer as valas e as mães tiraram as roupas do varal porque vai chover na Terra da Garoa. E estes que eu acabei de citar farão as mesmas coisas de formas díspares. São 11.895.893 nas estatísticas divulgadas anteontem, 28 de agosto de 2014, mas quase doze milhões de indivíduos absolutamente diferentes uns dos outros. Vale reforçar: somos desconhecidos mas seres únicos nesta maré de gente. O jovem que acabou de sair de casa pode ter dito tchau para os pais como pode não ter dito nada; é alto, nem tão alto, mais ou menos alto, baixinho, normal, pitoco; olhos verdes e arqueados, olhos azuis e arqueados, olhos castanhos e arqueados, olhos só castanhos; ri pelo canto da boca, ri escancaradamente ainda que sozinho, só ri com amigos, não ri porque é sério; lê muito, lê por obrigação, nem sabe ler; já teve filhos e se casou, já teve filhos e vai se casar, já se casou e vai ter um filho, acabou de ter um filho por saber que não vai mais casar; é nordestino, é carioca, é descendente de italiano, mineiro, francês, nem sabe de onde veio, é paulistano de nascença; (...). A ideia de habitante paulistano é uma complexidade em si mesma e a cidade se move neste mesmo ritmo. Move-se sobre trilhos, sobre asfalto, sobre prédios, sobre tudo. O único movimento que não é "sobre" é o "entre" de fios emaranhados e antenas conflitantes, que aproximam e afastam os habitantes paulistanos ao mesmo tempo. Disse bem Maria Rita que a vida deste nosso lugar é de idas e vindas, chegadas e partidas, encontros e despedidas. Prova disso é que são exatos 02:56 da madrugada e um avião está prestes a pousar no Aeroporto de Congonhas. Há habitantes paulistanos vigilantes como eu, mas não faço ideia de quantos são porque o IBGE não contabiliza este tipo de informação. Deveria. E digo mais: deveria saber quantos de nós gostam de feijoada; se preferem samba, pagode, chorinho ou nenhum dos dois; se escrevem cartões em datas comemorativas; quantas voltas dão na fechadura antes de sair de casa; se têm vontade de aprender a tocar algum instrumento musical; com que frequência dizem "eu te amo" e abraçam; se sabem andar de bicicleta; quantos são os que cheiram livros antes de comprá-los; se permitem-se ter momentos de ócio sem culpa; se existe ou não amor em esse pê; Nutella ou Paçoquita Cremosa? E acabou de sair um avião da capital paulista para o Aeroporto de Recife. Deve levar habitantes paulistanos que vão visitar habitantes de lá. Veio a minha mente agora que talvez os números sejam imprecisos. Afinal, para se tornar um número que seja, o habitante paulistano precisa, primeiro, comprovar que existe por meio de papéis. Sem estes papéis, ninguém existe, mesmo que comprove o fato de corpo presente. Na verdade, até para morrer é preciso ter papéis. E quantos habitam em São Paulo sem existir? Talvez nunca saberei. Contabilizados ou não, os habitantes paulistanos logo mais amanhecerão e povoarão as ruas, tecerão autonomamente colchas de retalhos de crônicas e mais crônicas. Quando me dou conta, reparo que este texto é uma pequeníssima mostra deste cenário plural e colaborativo, uma célula que se une à visão de outros tantos habitantes paulistanos sobre seu lugar de morada. São Paulo é mesmo pequena demais para abrigar tantos personagens e histórias... Mas gosto dela desse jeitinho, sempre tendo algo para contar.  

terça-feira, 19 de agosto de 2014

sábado, 16 de agosto de 2014

A Note to Somebody

I built a home
For you and for me
At the highest mountain
In the chest of the highest tree.

Ahead, the forest,
Crowned by vast green,
Dances when the wind blows
And welcomes nests in due time.

There, the shore
Lies sleepy under the sea
Which waves my wonderful boat
Named Pasárgada, the walker of the world.

Here, a few clouds
Covers these abundant skies,
Like a red curtain covers a theater stage
To reveal the myriad of actors from day and night.

It's all done:
The porch to enjoy the view,
The sweet tea to taste while seeing the sea
And a constellations' map to name all the stars above.

I built a home
For you and for me
But you did not come to me,
Neither warned me if you are safe and fine.

So I got to leave our home
To a beautiful and miserable moon
That shone brighter, invaded the wide room,
Showed no respect for the place I had carefully prepared for you.

domingo, 10 de agosto de 2014

- 5 -

Terminamos. Mas como o amor nem sempre é justo, as relações foram rasgadas em partes desiguais. Eu fiquei com praticamente tudo, e você escapou ileso. Você sutilmente sorriu quando disse adeus, e o adeus me arrancou o sorriso da face. Me anulou por inteira. Quando você me deu as costas e partiu, foi como se todo o tempo que passamos juntos tivesse virado areia de repente. Minha palma mais apertada não reteve um grão sequer - escorreu tudo asperamente por entre os dedos. Comigo só restaram seus olhos, emaranhados nos seus cabelos, embalados no seu cheiro, registrados nas fotografias, guardados dentro deste peito oco que eu tanto quero me desfazer agora.
Neste momento, você já deve ter chegado em casa e largado os sapatos em algum canto. Deve estar deitado, submerso em alívio. Esta noite meu corpo agônico se ergue sobre um caixote na rua e grita a plenos pulmões esgotados, porque eu amei, mas você não amou por mim.

sábado, 9 de agosto de 2014

Solitude Minha

Tenho medo de tudo o que possa me amedrontar.
Tenho medo do que sinto por você.
É errado e perigoso,
mas não consigo evitar.
Tenho medo de entrar em seus olhos
tão lívidos e verdes,
nesta floresta densa e escura
e não achar o caminho de volta.
Tenho medo deste meu sofrimento
causado por ti,
de formas obscuras e latejantes,
agudas como as notas de um violino -
quase inaudíveis, mas que tocam por dentro.
Medo pelo que você é.
Medo pela droga que me sinto perto de ti.
Medo por tentar me ajudar e não conseguir sair
deste buraco, túnel, prisão, ...
Diabos, seja lá o que for, mas só existe você
neste vazio, neste nada, neste infinito
em que estou metido.
Infinito oblíquo, dissimulado.
Rosa, despedaçada, em sangue e em dor.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Concorrência

O primeiro foi o Vendedor A, que por pouco não deu as caras nesta crônica. Isso porque ele apareceu de supetão, depois do aviso sonoro, quando as portas estavam prestes a se fechar. Ao se atirar, esbarrou num cara, a quem pediu "desculpas, patrão". Ajeitou o boné. Arregaçou a sacola que tinha nas mãos. Esperou que o trem tomasse certa distância da plataforma, então começou:
- Olha aí, pessoal, só na minha mão você leva chocolate Garoto por apenas 1 real... Chocolate ao leite de qualidade é só aqui. Vamos lá, pessoal, é pra acabar... Só na minha mão você leva chocolate Garoto por 1 real... Lá fora você vai pagar de 1,50 até 3 reais, mas aqui na minha mão, chocolate Garoto é só 1 real.

O Vendedor B chegou sorrateiramente, como quem não quer nada. Baixou a sacola plástica e deixou no chão. Se arrependeu, pegou a sacola de novo. Estava de bermuda e camiseta, apesar do frio. Permaneceu encostado ao lado da porta até ela fechar. Desconfiado, olhou para um lado, para o outro, atravessou o corredor. Daí:
- Primeiramente boa tarde, pessoal. Eu venho trazer pra vocês o delicioso chocolate Tortuguita por apenas 1 real... É chocolate Tortuguita recheado de baunilha ou brigadeiro. É só escolher, pessoal... Por aí você paga até 3 reais, mas aqui na minha mão é só 1 real!... Vamos lá que é pra acabar, pessoal!... Eu vou descer aqui na Água Branca, então é a última oportunidade... Antes de sair eu gostaria de pedir uma coisa pra vocês: entrar no site da Tortuguita e dar uma curtida no projeto deles. O projeto é com o Tamar, que cuida das nossas tartarugas. É por isso que eu só trabalho com esse produto, porque eu achei bem bacana esse projeto. Então quem puder, é só entrar no site e dar uma curtida que eu vou ficar muito agradecido. Valeu, pessoal!

A informação de quem vendeu mais fica por conta da inferência do leitor.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Existência

Estava lendo de cabeça baixa quando a Existência despiu-se por completo. Como uma apunhalada repentina na nuca, um frio percorreu a espinha de Lúcio por meio da ideia gritante de que existia. De repente, deu-se conta de seu corpo, de suas pontas, de seus limites. Levantou a cabeça devagar e cautelosamente, acostumando-se com a sua forma como se tivesse acabado de vir à luz, e observou os outros passageiros que, aparentemente, estavam alheios àquela descoberta íntima.
Ao seu lado, havia um indivíduo. (Pausa.) Reforçou o pensamento: a pouquíssimos milímetros do seu lado havia um indivíduo, corpóreo, que abrigava coisas que fugiam do seu conhecimento. Até porque as pessoas têm existências diferentes umas das outras, tão sabidas quanto a de seus vizinhos do barulhento 703, no Bloco D, sobre o qual está empilhado; 801, 802 e 804, que o limitam; 801 do Bloco A, que cobre sua vista do sol; 903, que o comprime, esmaga; e 1.104 do Bloco C, que geralmente para na vaga de garagem ao lado da sua.
Mas qual era a existência deste indivíduo? O corpo de Lúcio estava sentado ao lado deste outro corpo, compartilhando um espaço em comum, e nada sabia sobre ele. Intrigou-se. Se estendesse as mãos, tocaria no Outro. (Valha-me Deus!) Não somente isso, mas o sentiria, e ainda assim pouco saberia sobre ele. Baixou os olhos novamente e tentou situar-se no tempo e no espaço para não ficar solto desse jeito. Viver sem rédeas assim é inconcebível, coisa de louco. Viver desprendido do que quer que seja é insanidade, tem sim é que voltar. Agora ele inspirou, pensando que dessa forma retornaria ao estado anterior, a de que existia simplesmente sem ter a consciência disso para no fim descansar em paz como qualquer outro ser mortal. Mas foi em vão.
Sua existência era o agora. Ou será que não? A vida é uma palma no infinito. Reverbera o som... e some – já não está mais em tempo ou espaço algum. Ou será que não? Quem sabe o som só se dissipa, se enfraquece, se torna inaudível, mas continua a existir. Ou será que não? Intrigou-se. Pois o que será que vinha antes da palma? “Deus”, emendou logo, nervoso, querendo voltar à realidade, “antes da palma vem Deus”. Mas a imagem não lhe ofereceu conforto, pois o que sabe é que Deus é uma palma que nunca foi batida; é som que reverbera desde sempre e no sempre do porvir como no instante agora.
A vida intimidava! Ela abundava impiedosamente sobre o corpo friorento de Lúcio, que se comprimia por não conseguir assimilar toda a existência que acontecia simultaneamente neste exato momento. Concentrava-se no corpo vizinho, mas enquanto pensava nele, sabia que outro corpo existia sem precisar ser percebido, sem a força de um pensamento como o dele. Ele era mais um, assim como ele não era o centro da Terra, pois este não é o centro do nosso sistema, que por sua vez não está no meio do Universo, que, assim por diante, está enfiado num nada infinito que não tem meio porque nunca fincaram-lhe um ponto específico para ser dito: “Aqui é o início”.
Neste mundo vivem milhares de corpos autônomos, além de outros tantos corpos que habitaram este planeta e que deixaram o rastro de sua existência aqui. Mas aqui como, onde? As existências conhecidas são poucas, e ainda assim, nem todos as conhecem; sem falar de que algumas delas são baseadas em registros incertos, tão degradados como a palma que some. Descrever – organizar, expressar, racionalizar, destrinchar (...), como queira – tudo isso tudo num papel seria inútil a Lúcio: nada escapa de uma ordem irremediável, da sucessão de fatos que observa. Não conseguiria expressar a onisciência (parte orgânica, parte incorpórea) destes seres todos que Lúcio pensava existir e tentava inutilmente digerir. E mais:
Próxima estação: Paulista, transferência para a linha Dois-Verde do Metrô.
“É aqui que eu desço, é aqui”, sussurou Lúcio, exasperado, despertando. Com a mente inerte no momento agora, ele pediu licença ao Outro e saiu apressado, incorporando-se à correnteza de outros tantos indivíduos – um grande e besta cardume de peixes vivendo em seus trilhos de existências translúcidas e breves como o dia, tão monótonas aqui como no momento primeiro e também durante o porvir.