domingo, 3 de maio de 2015

haiku

Na Sala São Paulo,
dois pianos dialogam
sobre Tom Jobim.

Contando Cicatrizes

Era para ser um ato breve, mas paro em frente ao espelho e observo o penteado. A franja que usei minha vida inteira ainda está ali, disfarçada, apenas besuntada de gel e jogada para trás. Minha mãe adorou quando eu fiz isso pela primeira vez. Disse que podia ver meu rosto e que eu não parecia mais um menino. De pronto perguntei o que diabos eu parecia então senão um menino, ao que ela respondeu: “Um homem, Gustavo. Um homem.”

Com a testa descortinada, o que me chama a atenção em seguida é uma pequena marca e sua coloração esbranquiçada que destoa do restante da pele. Sou instantaneamente levado para uma tarde do passado em que tropecei e bati com a cabeça numa grade. Tinha lá meus oito anos e estava no recreio. Fui levado às pressas para a diretoria abrindo um berreiro que deve ter alcançado facilmente os céus, enquanto tentava estancar com as mãos sujas o sangue que jorrava aos borbotões. Ligaram para a minha casa. Meu pai veio me buscar. Ele afastou minha franja do machucado e disse, numa mistura de repreensão e alívio, como por pouco aquela traquinagem não havia lesionado seriamente o olho e – “graças a Deus que isso não aconteceu” – danificado a visão. Fui para casa, recebi compressas de gelo e não pude cochilar porque meus pais não deixavam. “Por causa da pancada, que foi forte, filho.”

A cena é bem trágica, mas antes que isso tudo acontecesse, estava me divertindo à beça. Brincava de pega-pega com meus amigos, e a vez era minha. Como nessa época eu tinha meus problemas respiratórios controlados, mas não totalmente resolvidos, sempre ficava em desvantagem. Tinha que redobrar o esforço para pegá-los. Mas lembro de que eu ria tanto que poderia molhar as calças se não me controlasse. E foi este ápice que precedeu a queda: gargalhava copiosamente antes de amargar a dor em lágrimas.

Escorrego o olhar pelo resto do corpo até encontrar uma mancha roxa no meio da costela esquerda. Adquiri-a ao cair num buraco com barras de ferro enferrujadas e entrelaçadas que, embora tenham ficado com pedaços da minha pele de recordação, livraram-me de sumir por inteiro dentro do nada. Posso jurar que quebrei algum pedaço da minha costela neste episódio porque a considero meio torta, mas minha mãe não dá muito crédito. “Provavelmente teria perfurado seu pulmão e você teria corrido risco de morte”, ela sempre afirma, acrescentando um tom trivial ao que seria uma tragédia. De qualquer forma, no prólogo desta história eu me sentia bastante feliz por nenhum motivo aparente. Daí quis visitar meus primos, e no momento em que me virei para perguntar aos meus pais se podíamos dar uma passadinha lá, eu perdi o chão, literalmente.

Aos poucos vou me recordando de outras ocasiões que podem não ter deixado marcas visíveis, mas que foram dolorosas, antecedidas ou não por momentos alegres. Como aquela vez que trombei com um amigo na esquina em frente à minha casa enquanto andava de bicicleta em alta velocidade. Ou quando suguei água com detergente ao invés de soprá-la para produzir bolhas de sabão com a ponta do canudo. Como esquecer quando meus pais doaram um cachorro que amava enquanto eu estava fora de casa? Que dirá então daquela vez que eu quis colocar um bezerro no colo e tomei um coice nas partes...

Percebo então que conforme os anos passam, a gente deixa que as responsabilidades do presente e o receio em relação ao futuro nos roubem o direito de deixar as coisas acontecerem como devem acontecer. Nos privamos de passar por certas situações por motivos que os adultos têm bastante facilidade de listar: medo da intolerância da sociedade a falhas, medo de sentir-se inseguro no meio do caminho, medo de tomar o risco das decisões e suas consequências, medo do que os outros vão pensar, medo de gozar uma dose de ludicidade às vezes (ou sempre) necessária, medo de chegar ao fim e ver que não era bem aquilo que se esperava, medo do que é incerto, medo de se machucar, medo até de pegar mais leve consigo mesmo.

Crianças fazem o que fazem justamente porque seus medos são outros, bem menos “sérios” do que esses. Aventurar-se é o lema delas.

A verdade é que até rir demais faz a barriga doer, e nem por isso deixamos de achar graça das coisas. Então, se for para doer, que seja pelo riso excessivo. Mas se for pela via oposta, a do lamento, que seja tratada a seu tempo para que resulte em algo bom. O fato é: mesmo as dores mais lancinantes e persistentes, por piores que sejam, uma hora passam, curam e tornam-se cicatrizes. Interagir com a vida dá nisso mesmo, é inevitável. E essa verdade batida, por vezes relatada pela humanidade, permanece sem sentido até que a vida se encarrega de ensiná-la, cedo ou tarde, a cada um de nós. Parece-me agora que uma existência cheia de cicatrizes e experiências é preferível a outra de mera sobrevivência, passada em branco. Melhor é aprender com os fatos do que não vivê-los e ainda assim julgar saber sobre tudo. Neste sentido, lamento não ter escoriado mais vezes ou quebrado alguns ossos na infância... Algo que pode mudar daqui para frente. Há tempo. E minha franja permanece aqui.